Artigo | O Negro em Movimento e a celebração da Consciência

É importante olharmos com atenção para a nossa História e para tudo aquilo que com tanto sangue e suor foi conquistado


Primeiros atos do MNU na década de 70 denunciavam o mito da democracia racial no Brasil – Jesus Carlos/Memorial da Democracia

A celebração do Dia da Consciência Negra no dia  20 de novembro carrega consigo não apenas a memória e homenagem a Zumbi, líder de Palmares,  mas carrega sobretudo um longo e importante processo de organização e luta da população negra brasileira que pôs em movimento com avanços e recuos mas sem perder de vista  a importância do fim do racismo.

O intuito desse artigo é fazer um breve resgate sobre a trajetória do movimento negro organizado a partir da Proclamação da República (1889), compreendendo a importância de conhecer nossa História para sabermos que a nossa luta não começou agora. Como afirma o movimento de mulheres negras: nossos passos vêm de longe.

 Para início da compreensão do período no qual parte a explanação, é importante ressaltar que o fim oficial da escravidão em 1888, juntamente à Proclamação da República em 1889 e a Constituição de 1891 são marcos que fundam a transição do modo de produção escravista colonial para o modo de produção capitalista no Brasil. Momento no qual uma massa de trabalhadores ex-escravizados vão se deparar com um novo mecanismo de exploração da sua força de trabalho e também um novo mecanismo de hierarquização e opressão racial. 

Despossuídos politicamente, socialmente e economicamente de qualquer direito, os libertos, ex-escravizados e seus descendentes instituíram movimentos de mobilização racial negra no Brasil, criando inicialmente grêmios, clubes ou associações tais como o Club 13 de Maio dos Homens Pretos (1902) em São Paulo; Centro da Federação dos Homens de Cor (1914) no Rio Janeiro; o Centro Cívico Cruz e Souza (1918) em Lages. Alguns desses grupos tinha um perfil bastante proletário formado por portuários, ferroviários e ensacadores, constituindo o que poderia até ser percebida como uma entidade sindical*.

Ao mesmo tempo, já existia desde o século XIX o que se denomina imprensa negra: jornais publicados por negros e elaborados para tratar de suas questões***. Esse jornais foram e ainda são ferramentas fundamentais para o diálogo com a sociedade. O jornal Alvorada de Pelotas (RS) publicado com pequenas interrupções de 1907 a 1965 foi o periódico da imprensa negra de maior longevidade no país. Aqui no Recife no século XIX tivemos o semanário O Homem fundado em 1876 e o jornal Angola de 1980 que cumpriu importante papel no período da redemocratização.

Até o golpe militar de 1964 duas experiências organizativas da população negra se destacaram pela dimensão que tomaram. A primeira delas é Frente Negra Brasileira (FNB) fundada em 1931 como um movimento mas tornou-se um partido em 1936. A FNB Na primeira metade do século XX, a foi a mais importante entidade negra do país, alguns dirigentes chegam a dizer que chegou a superar 20 mil associados e se converteu em um movimento de massas.

Inseridos e influenciados pela conjuntura internacional da Segunda Guerra Mundial e  pela  ascensão no nazi-fascismo, a FNB possuía um programa político e ideológico autoritário e ultranacionalista. A entidade chegou a ser recebida por Getúlio Vargas e conquistaram a permissão para o ingresso de negros na guarda civil em São Paulo. Com a instauração do Estado Novo em 1937, a Frente Negra Brasileira foi extinta.

Outra entidade importante foi o Teatro Experimental do Negro (TEN), fundado no Rio de Janeiro, em 1944, e que tinha Abdias do Nascimento como sua principal referência. A proposta inicial era formar um grupo teatral constituído apenas por atores negros buscando um novo estilo dramatúrgico, com uma estética própria. Mas progressivamente o TEN adquiriu um caráter mais amplo: publicou o jornal Quilombo, passou a oferecer curso de alfabetização, de corte e costura; fundou o Instituto Nacional do Negro, o Museu do Negro e organizou o I Congresso do Negro Brasileiro (1950).

Com o golpe militar, o Movimento Negro organizado entrou em refluxo bem como todos os setores populares de representação política e somente no final da década e 1970, no bojo do ascenso dos movimentos populares, sindical e estudantil no Brasil, ressurgem experiências locais diversas e dentre elas o Grupo Palmares (1971), o primeiro no país a defender a substituição das comemorações do 13 de Maio para o 20 de Novembro como vinha-se fazendo até então**.

Inspirados pelas lutas de libertação anticolonialistas na África e pelo movimento dos direitos civis dos negros nos Estados Unidos, em 1978, é fundado o Movimento Negro Unificado (MNU), um marco na luta antirracista no Brasil, tem-se, a partir deste momento, a volta à cena política do movimento negro organizado. De caráter marxista o MNU compreendia que a luta antirracista tinha que ser combinada com a luta revolucionária anticapitalista.

Em 1982 foi formulado o Programa de Ação do movimento que elencava reinvindicações que são pertinentes e necessárias até os dias de hoje, tais como: desmistificação da democracia racial brasileira; formação de um amplo leque de alianças na luta contra o racismo e a exploração do trabalhador; e a luta pela introdução da História da África e do Negro no Brasil nos currículos escolares.

É a partir desse momento e da abrangência nacional do MNU que o dia 13 de Maio, dia em que era celebrada a abolição da escravatura, transformou-se no Dia Nacional de Denúncia Contra o Racismo. A data de celebração do MNU passou a ser o 20 de Novembro, a qual foi eleita como Dia Nacional de Consciência Negra. A Lei n.° 10.639/2003, que instituiu a obrigatoriedade do ensino da “História e Cultura Afro-Brasileira” e também reconheceu o 20 de novembro como Dia Nacional da Consciência; e pela lei n.° 12.519/2011 foi consolidado o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra.

E a fim de fortalecer a consciência racial da população negra que foi historicamente negada ou usurpada, o MNU passou a utilizar o termo “negro” que até então era visto de maneira pejorativa, como uma afirmação política que designaria todos os descentes de africanos escravizados no país. Deixava-se, dessa forma, de ser utilizada a expressão “homem de cor”.

Diante desse breve histórico dos passos que foram dados, é importante olharmos com cuidado e atenção para a nossa História e para tudo aquilo que com tanto sangue e suor foi conquistado e nos foi legado. 2020 foi um ano em que o racismo e a luta antirracista entraram no centro do debate, manifestações diversas foram feitas nas ruas e nas redes, a indignação com a sociedade estruturalmente racismo que somos é latente e é permanente e nos cabe, como ressalta o lema de uma agremiação carnavalesca pernambucana, “organizar a raiva” e coletivamente construir o Brasil que nós queremos. A celebração da Consciência Negra é a celebração de um povo que se forjou na luta, então celebremos em luta.

Referências

*DOMINGUES, Petrônio.  Movimento Negro Brasileiro: alguns apontamentos históricos. Tempo [online] 2007. 2007, vol.12, n.23, pp.100-122.

**GONZALES, Lélia. HASENBELG, Carlos. Lugar de Negro. 1982

***PINTO, A. De Pele Escura e Tinta Preta:  A Imprensa Negra  do Século XIX (1833-1899). Dissertação (Mestrado em História). Instituto de Ciência Humanas, Universidade de Brasília. Brasília, p.197, 2006.

Texto: Iyalê Tahyrine| Fonte: Brasil de Fato

QUEM DISSE QUE A CONSCIÊNCIA NÃO PODE SER NEGRA?

 

 

É muito interessante quando pessoas racistas ou ignorantes criticam o “Dia da Consciência Negra” com depreciações, desdém ou preconceitos como se o movimento negro estivesse promovendo uma espécie de “racismo disfarçado”. Para essa gente seria necessário criar o “Dia da Consciência Branca”, garantindo assim uma equiparação de direitos.

Num país miscigenado, multicultural e tão desigual como o Brasil, os símbolos e representações servem tanto para demarcar posições, defender interesses ou manter privilégios. As cores vêm sempre acompanhadas de alguma explicação ou intencionalidade. Nesse sentido, pensar o Novembro Negro, o dia da Consciência Negra, é pensar na cor que representa histórias de violências, injustiças, invisibilidades contra o povo negro, mas acima de tudo, de lutas, riquezas culturais, conquistas sociais já alcançadas, assim como tantas outras ainda por alcançar.

Algumas questões sobre o cotidiano e a forma como as cores são usadas para representar as relações entre pretos e brancos podem nos dizer muito sobre as desigualdades raciais e o atraso que atinge principalmente as populações afrodescendentes desse país. Por exemplo, quando nos deparamos com expressões do tipo: “a coisa tá preta”,  “lista negra”, “mercado negro”, “magia negra”,  “ovelha negra”, “negra maluca”, “samba do crioulo doido”, o racista, ou quem  reproduz o racismo, não se incomoda em associar a cor preta a algo ruim ou sem valor. Para essas pessoas isso é “super-normal”.

No entanto, quando pretos e pretas, resolvem utilizar a sua cor para se defenderem e até mobilizar a sociedade em busca de mais igualdade e oportunidades, os mesmos racistas ou reprodutores do racismo os acusam de serem incoerentes, segregadores, oportunistas ou “vitimistas”. Daí se compreende que a cor do racista é cor da conveniência daqueles que temem perder privilégios. Para esses o despertar da consciência do negro, a força da sua mobilização, é motivo para escândalo. Racistas odeiam ver o nosso povo ocupando lugares que até então eram ocupados apenas por brancos — já que é necessário manter as coisas como sempre quiseram: negro nasceu para servir, branco nasceu para ser servido.

Ao considerarmos a cor predominante sobre determinadas situações, cabe perguntar:  qual é a cor da população carcerária no Brasil? Qual é a cor dos cursos de medicina, engenharia civil, direito? Qual é a cor das empregadas domésticas? Qual é a cor dos que ocupam a direção das empresas milionárias desse país? Qual é a cor do extermínio de jovens nas periferias?  Qual é a cor do padrão de beleza? Qual é a cor dos catadores de uva e manga que saem do João de Deus, José e Maria e tantas outras comunidades de Petrolina, e vão para as  fazendas de fruticultura do Vale do São Francisco? Qual é a cor dos seus patrões?

Quando se leva em conta as grandes fortunas, o luxo, as regalias, o sucesso, a realização pessoal e profissional, a cor, geralmente, é branca, na maior parte do ano. Quando se leva em conta a dureza da vida, a ralação, os corres, o serviço pesado, o sufoco, a humilhação, a cor, geralmente, é preta, na maior parte do ano. Como é possível, diante de tamanha desigualdade que pretos e pretas não possam reivindicar ao menos um mês para lembrar a essa sociedade o quanto de injustiças são cometidas contra o povo negro ao longo de mais de quatro séculos? Como não tirar ao menos um mês para lembrar da importância das suas lutas para o desenvolvimento da nação?

Só racista convicto ou gente muito ignorante não consegue compreender que enquanto a maior parte da população, composta por pretos e pardos, continuar excluída de direitos e violada na sua dignidade esse país será somente o país do atraso. É contra tudo isso que lutamos no dia de hoje e lutaremos todos os dias, até o dia em que não presenciemos mais violências raciais. Essa luta começou com os nossos antepassados, há mais de 400 anos. Portanto, ter consciência negra é ter consciência da luta por um país mais justo.

Viva Dandara! Viva Zumbi! Viva Marielle Franco! Viva mestre Moa do Katendê! Viva a resistência do Povo Negro!

 

Gilmar Santos – Professor de História e vereador na Câmara Municipal de Petrolina