“Fraternidade é superar a violência
É derramar, em vez de sangue, mais perdão
É fermentar na humanidade o amor fraterno
Pois Jesus disse que “somos todos irmãos”
(Hino da Campanha da Fraternidade 2018, CNBB)
A violência é uma característica que sempre forjou as civilizações ao longo da história. Escravidão, tortura, guerras e abusos se deram das mais variadas formas. Vozes contra essa prática transgressora se levantaram, quase sempre de forma isolada e denunciatória. De Gandhi a Mandela, ícones do século XX, podemos também lembrar tantos outros menos conhecidos, mas de igual força e discurso semelhante.
É comum que muitas pessoas associem os discursos violentos às religiões. A proeminência de grupos terroristas de base islâmica fortaleceu um estereótipo altamente preconceituoso no Ocidente: o de que o Islã prega a violência, a intolerância e o ódio. Assim como o Alcorão, os evangelhos que narram a vida e a prática de Jesus de Nazaré transmitem mensagens de pacificação, respeito e amor. Mas, se essas mensagens estão tão marcadamente fortes nesses textos, por que existem religiosos que aderem ao discurso violento?
O cristianismo promoveu inúmeras marcas históricas com base em sangue e tortura – tudo muito distante do início de sua prática nas pequenas comunidades de fé. Facilmente há que se identificar as cruzadas, quando europeus do Ocidente marcharam para conquistar e sobrepujar Jerusalém. Também é possível lembrar-se da inquisição e suas fogueiras condenatórias de mentes e corpos.
Porém, passados esses tristes episódios, mantém-se latente um discurso odioso bastante diferente do que é pregado pela figura que inspirou a religião. Não é difícil encontrar saudosistas das Cruzadas, travestidos em trajes medievais e militares. Também não são raros os comentários hostis em páginas nas redes sociais que aludem à inquisição e desejam sofrimento, morte e dor ao outro sem nenhuma demonstração da piedade, tão defendida por Jesus.
Encontrar a resposta para essa dissonância certamente não é tarefa das mais simples. Exigiria vários estudos, desde o campo das ciências da religião, até a teologia, a linguística ou a antropologia. Algumas pistas, talvez, possam ajudar. Muitos líderes inspiram-se, de modo descontextualizado, no Deus do Antigo Testamento. Outros, de modo incisivo, arrebanham seguidores no discurso fácil do inimigo comum e na personalização do diabólico em pessoas, grupos ou instituições. Despertar o ódio é uma tarefa mais fácil, rápida e, com toda certeza, mais lucrativa do que despertar o amor e a tolerância.
De fato, dar a outra face não parece ser um discurso que mobilize multidões em um primeiro momento. Portanto, usa-se a força histórica do que é divino, dando a Deus um discurso distorcido daquele que fora propagado por Jesus de Nazaré. E o ódio e a violência não se dão apenas de forma exógena. As agressões internas entre grupos da mesma religião, sobretudo no catolicismo, têm sido uma prática comum.
Grupos ligados à Teologia da Libertação, como a Pastoral da Juventude e as Comunidades Eclesiais de Base, são abertamente atacados por celebridades cibernéticas de nicho ultraconservador. Do inferno à fogueira ainda neste mundo, os seguidores que se autopropagam cristãos verdadeiros destilam toda sua repulsa a quem professa a mesma fé. Ataques intolerantes e ações coordenadas expõem visões racistas e de forte caráter agressivo.
A própria Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) convive com os ataques gratuitos e a negação de muitos grupos às suas ações, como a Campanha da Fraternidade, boicotada em muitas paróquias e movimentos pelo país. Em 2018, aliás, a campanha aborda a segurança pública e instiga os fiéis a pensarem uma sociedade que não combata violência com mais violência – exatamente no momento em que cresce o apoio ao discurso armamentista e ocorre o início de uma intervenção militar no Rio de Janeiro.
Chega o momento em que as igrejas cristãs precisarão repensar seu discurso e sua prática. Na contramão do pacifismo de Jesus e do discurso de grandes lideranças, como do Papa Francisco, larga parcela de fiéis caminham para o apoio a massacres, pena de morte, armamentismo e torturas. Muitos o fazem em nome de Deus. Encontrar a raiz desse disparate é tão importante quanto enfrentá-lo, na medida em que o Brasil, sobretudo, vê crescer a violência de forma desordenada.
Não são somente as armas que matam e ferem os mais fracos, mas também as palavras que perpetuam discursos e cultura de morte. E é aí que reside o perigo de alimentar um cristianismo intolerante e puritano, que enxerga no diferente a personificação do diabólico e que, por isso, julga merecer um ódio combatente. As redes sociais amplificam a coragem dos “novos cruzados”, saudosistas do que não viveram. Esses “cavaleiros cibernéticos”, orientados por alguns generais de batina, defendem, de modo ferrenho, o modelo de instituição em que acreditam, sem discutir as palavras de Jesus e sem pestanejar em condenar os que se enfileiram nos mesmos templos, mas que, por não compactuarem com seu comportamento pré-conciliar, recebem uma excomunhão particular, que é dada ilimitadamente por quem se autointitulou “portador da verdade”.
Jesus de Nazaré agiu de modo bem diferente do que muitos de seus seguidores pregam atualmente. É apenas uma parte, porém, uma parte crescente. São católicos e evangélicos que se esqueceram dos ensinamentos pacifistas e se alinharam aos apedrejadores ironizados pelo Mestre que pretendem seguir. Numa sociedade cada vez mais violenta, a religião vai sucumbindo à lei do “olho por olho e dente por dente”. Paradoxalmente, é no meio religioso que se deve plantar a discussão social e humanitária que propague uma sociedade que luta por justiça e não por vingança: desafio diário de quem crê na paz e na superação da violência.
Por: Vinícius Borges Gomes