“Como se vê, a violência no Brasil não é abstrata, e por isso as políticas públicas de enfrentamento a essa violência também não podem ser”
No último dia 27 de agosto foi publicado o Atlas da Violência 2020, relatório organizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), que contém análises sobre os homicídios cometidos em 2018. A importância dessa publicação está na caracterização de que o país em que vivemos é extremamente violento, com 57.956 homicídios ao longo do ano, mas, principalmente, para identificação do perfil das vítimas.
Nesse sentido, o Atlas segue a tendência das pesquisas sobre mortes violentas no Brasil dos últimos anos ao demonstrar que as vítimas de homicídios no Brasil têm um perfil bem definido: jovens negros do sexo masculino. No ano de 2018, negros e negras representaram 75,7% das vítimas de homicídios, o que significa concretamente que, para cada indivíduo não negro assassinado, 2,7 negros foram vítimas de homicídio. A análise de dados relacionados à juventude também surpreende, já que, apenas no ano de 2018, 30.973 jovens foram assassinados no país. Isso significa que 53,3% das vítimas foram pessoas entre 15 e 29 anos de idade.
Em que pese a letalidade seja maior entre os homens, a análise dos dados de homicídios praticados contra mulheres também evidencia o racismo estrutural. Ao longo de 2018, 4.519 mulheres foram assassinadas no Brasil, sendo que 68% delas eram mulheres negras. Nos últimos 10 anos, houve redução de 11,7% dentre os assassinatos de mulheres não negras e aumento de 12,4% entre as mulheres negras.
Como se vê, a violência no Brasil não é abstrata, e por isso as políticas públicas de enfrentamento a essa violência também não podem ser. No caso do combate a violência contra as mulheres, por exemplo, se é verdade que ela pode vitimar todas as mulheres, o mesmo não pode ser dito sobre aquelas que conseguem viabilizar estratégias para o rompimento dessa realidade, como demonstram os dados da letalidade. Sendo assim, é fundamental a compreensão acerca das diversas camadas de violência e opressão que recaem sobre as mulheres negras e periféricas, identificando-se, por exemplo, que o racismo institucional inviabilizará o seu acesso às políticas públicas de enfrentamento à violência doméstica enquanto elas tiverem como centro os órgãos de segurança pública e justiça criminal, igualmente identificados por essas mulheres negras como aqueles responsáveis pelo encarceramento e violência praticados contra seus filhos, irmãos e vizinhos.
De igual modo, o que explica o fato de que as políticas de enfrentamento à violência no país sejam responsáveis pela diminuição dos números de homicídios praticados contra pessoas brancas ao passo em que fazem aumentar o índice de assassinatos contra negros? Se, por um lado, há um grande número de homicídios no Brasil, por outro a taxa de resolução de crimes contra a vida é baixa e as nossas penitenciárias concentram uma taxa elevada de presos por crimes contra o patrimônio, como roubo e furto, e por tráfico de drogas.
Há algo de muito errado no modelo de segurança pública do país, que concentra um número muito grande de homicídios de jovens negros, em grande parte praticados por forças policiais, que não são solucionados, seja por falta de interesse político, seja por incapacidade da estrutura policial em investigar casos complexos. Esse mesmo modelo, que não oferece respostas à interrupção do futuro de dezenas de milhares de jovens, encarcera outros milhares, todos os dias, por crimes relacionados ao patrimônio. Se esse cenário não for repensado de forma séria, as tendências trazidas por relatórios de pesquisa como o Atlas da Violência continuarão expressando, nos próximos anos, essa mesma realidade indignante.
Fonte: GGN | porPaula Nunes