O tema da redação do ENEM deste ano nos faz essa provocação: como democratizar o acesso ao cinema no Brasil. E nós devolvemos essa provocação com outras: as nossas escolas discutem e valorizam os nossos artistas e suas produções culturais? As nossas escolas estudam e discutem políticas públicas de cultura? Talvez tenhamos nessas respostas um misto de filmes de ficção, comédia, drama e terror.
O tema de redação do ENEM deste ano, “democratização do acesso ao cinema no Brasil”, cumpriu as previsões do que preconiza o exame: apresentar situação-problema que desafie a atenção, leituras e análises de professores e estudantes sobre conjunturas e desafios postos à nossa sociedade. Nesse caso, as políticas de cultura dedicadas ao cinema nacional. Saber que um dos textos-base é de autoria do Jean-Claude Bernardet (‘ ‘O que é cinema”), nos traz uma emoção à parte — ao final do texto você vai entender.
Quando falamos em políticas de cultura, estamos tratando de um conjunto de ações pensadas, planejadas, articuladas com os mais diversos sujeitos e instituições ligadas aos seguimentos interessados na sua implementação. Infelizmente, no Brasil, essas políticas ou não existem ou,
quando existem, são construídas com pouco aprofundamento democrático, e tantas vezes marginalizadas pelo interesse de governos autoritários, muitas vezes, mais preocupados em agradar o mercado que democratizar direitos culturais da nossa população.
O tema da redação do ENEM deste ano nos traz alguns lembretes: de que forma estamos tratando a cultura brasileira nas nossas escolas? Além de estudar símbolos, histórias de personalidades e movimentos artísticos, estamos discutindo como o Estado, os governos, e a própria sociedade, estão tratando os nossos bens e produções culturais? Pensamos politicamente aquilo que estudamos?
Como sabemos, as manifestações artísticas e culturais do nosso país sempre sofreram intervenções de governos. Em muitos casos, ou foram usadas como meio de manutenção da ordem, ou foram perseguidas por representarem uma ameaça a essa mesma ordem. Com o cinema não foi diferente.
Quantos cineastas não tiveram seus filmes censurados durante a ditadura militar? Quantos não foram obrigados a mudarem o conteúdo dos seus filmes para agradar governos ou setores da elite nacional? Quantos não desistiram de produzir por falta de apoio governamental, ou por não se submeterem aos caprichos empresariais? Por falta de investimentos públicos milhares de salas de cinema pelo país foram apropriadas, entre os anos 90 e 2000, por igrejas neopentescostais. Quantas vezes estudamos isso nas nossas escolas?
Por saber da força da cultura e, particularmente, o potencial transformador do cinema, um governo de viés fascista, truculento, orientado pelo que existe de pior em temos de violência política, como é o do Bolsonaro, não poderia deixar de atacar alvo tão ameaçador. O desmonte da Agência Nacional de Cinema (ANCINE), com perseguições, exonerações, censuras e cortes de investimentos é uma das provas mais concretas.
Enquanto alguns dormem, e outros não querem perceber ou não querem discutir o potencial da nossa cultura, artistas, produtores, fazedores e trabalhadores do seguimento continuam resistindo com os seus trabalhos e projetos. Kleber Mendonça Filho, Juliano Dornelles e a equipe do premiadíssimo filme, “Bacurau”, não nos deixam mentir. Em Petrolina e Juazeiro, diversos cineastas e ativistas, antigos e novos, fazem parte dessa luta. O Cine Clube Cine Raiz, de Chico Egídio e Lizandra Martins; o Cine Papelão da Associação das Mulheres Rendeiras, do bairro José e Maria; os filmes, projetos e oficinas de audiovisual de Robério Brasileiro e Fernando Pereira, são exemplares.
Temos cineastas com filmes muito bem aceitos e até premiados, como “Necropólis”, dirigido por Ítalo Oliveira e produzido pela NU7 produções. E o que dizer do “Nuvem Negra”, de Flávio Andradee, que recebeu indicações e premiações em mais de 10 festivais nacionais e internacionais. A emoção de que falava no início desse texto é que o ator principal do filme de Flávio é, exatamente, o Jean-Claude Bernardet, um dos mais importantes críticos de cinema do nosso país, a quem tive a oportunidade de conhecer durante as gravações do filme.
A maior parte desses artistas só conseguiu desenvolver os seus projetos porque recebeu algum apoio governamental. Ainda é muito pouco, mas esse pouco pode virar nada diante da atual conjuntura, dominada por gente de estupidez que duvidamos ver até mesmo nas telas de cinema. O governo de Petrolina jamais cogitou qualquer apoiou, nem mesmo quando foram receber prêmios. As nossas escolas têm dado conta disso?
O tema de redação do ENEM deste ano nos faz essa provocação: como democratizar o acesso ao cinema no Brasil. E nós devolvemos essa provocação com outras: as nossas escolas discutem e valorizam os nossos artistas e suas produções culturais? As nossas escolas estudam e discutem políticas públicas de cultura? Talvez tenhamos nessas respostas um misto de filmes de ficção, comédia, drama e terror. Penso que se faz necessário enfrentar essa “Bacurau”, nem que para isso tenhamos que perder a paz.
Gilmar Santos é professor de História, Filosofia e Sociologia do Impulso Vestibulares e Concursos, e vereador em Petrolina-PE.