Juristas repudiam fichamento de pobres por Exército no RJ

Militares protagonizam uma série de vilipêndios aos direitos fundamentais no Rio de Janeiro

São poucos os juristas que não demonstram indignação contra o que está sendo feito pelas Forças Armadas sob o comando de Michel Temer na intervenção federal que se impôs ao Rio de Janeiro. A contrariedade se dá especificamente com a prática adotada de fichar todo e qualquer morador de algumas comunidades que queira sair de sua casa para ir trabalhar.

O cidadão é obrigado pelas tropas a mostrar RG e deixar-se fotografar. E se não estiver portando documento oficial com foto? E se não quiser se deixar fichar? Aí volta para casa, não sai da comunidade.

São tantas as ilegalidades, as inconstitucionalidades, os descumprimentos a tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, que os juristas até perdem a conta. Cada um vai citando uma norma que está sendo flagrantemente rasgada pela ocupação de Temer.

A Agência PT de Notícias ouviu especialistas de diferentes matizes ideológicas e doutrinárias. Nenhum foi capaz de escudar os procedimentos postos em prática na intervenção federal. Todos se mostraram chocados e entristecidos com o que ora acontece no Brasil. Veja abaixo os apontamentos dos juristas, com trechos selecionados para se evitar uma repetição cansativa de vícios do decreto interventor e da atuação do Exército.

Gustavo Henrique Badaró – Professor Associado de Direito Processual Penal da Universidade de São Paulo (USP)

“O procedimento é claramente ilegal. Não há nenhuma obrigação de que as pessoas passem por cadastramento ou se identifiquem em situações como as que vêm ocorrendo. Muito menos que tais atos possam ser colocados como condicionantes para que os cidadãos das comunidades exercitem o direito de ir vir, garantido pela Constituição.

Existe na Constituição duas situações excepcionais, o Estado de Sítio e o de Defesa, em que alguns preceitos fundamentais podem ser relativizados. Mas o que está acontecendo no Rio é uma intervenção federal, que de nenhuma maneira suspende direitos como o de privacidade e o de locomoção.

A intervenção implica restrição ao exercício da função publica a quem foi eleito (o governador do Rio de Janeiro), mas jamais pode relativizar direitos individuais dos cidadãos do estado sob intervenção.”

André Lozano Andrade – advogado especialista em processo penal, coordenador do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM)

“O procedimento adotado pelo Exército é absolutamente ilegal. Jamais a autoridade policial poderia fotografar compulsoriamente alguém que já está apresentando um documento oficial com foto. Nem na delegacia de polícia isso é permitido, quando alguém é levado coercitivamente ao local sobre manifesta suspeita de cometimento de ato ilícito, quanto mais assim, gratuitamente.

Para qualquer agente de segurança abordar um cidadão na rua para revista e identificação, é preciso que exista alguma motivação, alguma suspeita de que aquela pessoa estaria portando algo ilegal, estaria prestes a cometer ou teria cometido algum crime. Caso contrário, caracteriza-se flagrante abuso de autoridade.

O que se observa na Maré nada mais é do que a criminalização da pobreza. A premissa é a de que uma pessoa, por ser moradora de uma determinada comunidade, que abriga milhares de cidadãos, já presumidamente pode ser tratada como suspeita, já pode receber o tratamento que se dá a suspeitos. Não há qualquer previsão legal que permita tal procedimento.

É preciso lembrar que a Constituição Federal não está suspensa no Rio de Janeiro, os direitos fundamentais previstos no Artigo 5º da Lei Maior seguem vigente nas comunidades da capital fluminense ou onde quer que seja dentro das fronteiras brasileiras.”

André Castro – Defensor Público-Geral do Estado do Rio de Janeiro

“Sobre o fichamento de moradores de comunidades fluminenses por militares das Forças Armadas: a abordagem generalizada de cidadãos está em manifesto desacordo com a Constituição Federal e configura violação dos direitos fundamentais. Trata-se, portanto, de grave violação dos direitos à intimidade e a liberdade de locomoção.

É extremamente preocupante a ausência de transparência nas operações, são graves as notícias de expulsão de profissionais da imprensa dos locais onde essas ações estão sendo realizadas. Trata-se de inconstitucional violação ao exercício profissional do jornalista, que tem não apenas o direito, mas também o dever de informar à população sobre o trabalho das instituições.

Os agentes federais, como qualquer ente público, têm o dever administrativo de prestar contas à sociedade, além da estrita observância dos princípios constitucionais.”

Thayna Yaredy – Advogada especialista em questões raciais e violência institucional. Coordenadora de Direitos Humanos do IBCCRIM

“Além dos direitos fundamentais previstos na Constituição, ações como essa ferem tratados e convenções internacionais, como a Convenção Internacional dos Direitos Humanos e a Convenção sobre os Direitos da Criança. Esse tipo de catalogação não passa só pelos adultos, e viola normas supraconstitucionais.

O decreto de intervenção deveria conter a previsão dos procedimentos que seriam implementados, como seriam as abordagens, mas nunca indo além do permitido na Constituição. Mas, infelizmente, o decreto é omisso e inócuo nessas questões.

O comportamento do Exército caracteriza aplicação da violência para manutenção do poder, além de ser racista e discriminatório, criando cidadãos de primeira e segunda classe. Afinal, as ações de bloqueio e fichamento são feitas exclusivamente em comunidades, ocupadas por famílias negras e pobres. O arbítrio é relegado a determinados setores da sociedade, onde tradicionalmente qualquer tipo de violência é permitido. Em nome da segurança pública do asfalto, deixa-se de resguardar a a cidadania de quem mora no morro.

O estado de exceção só está acontecendo nas comunidades pobres, a exceção da atuação de segurança não está sendo utilizada nos bairros nobres. as pessoas são despidas da qualidade de ser humano nos morros, e chefes de tráfico do asfalto não são atingidos por qualquer ação.”

Breno Melaragno – Presidente da Comissão de Segurança Pública da OAB/RJ (Ordem dos Advogados do Brasil)

“Obrigar as pessoas a tirar fotos é ilegal, assim como fazer revistas de forma indiscriminada. Os agentes se excedem quando pedem para fotografar as pessoas, é um constrangimento ilegal e o cidadão pode (deveria poder) recusar.”

Yuri Felix – Professor de Direito Processual Penal e diretor do IBCCRIM

“Os direitos à personalidade e à liberdade de locomoção são fundamentais. São direitos que estão além de um decreto de intervenção. Não cabe ao Estado estabelecer as regras para que o indivíduo exercite essas prerrogativas. Quando o indivíduo se vê coagido a fornecer sua imagem e alguns dados, não sendo suspeito de qualquer delito, tem seus direitos mais básicos vilipendiados pela ação estatal.

Afirmar que o indivíduo deve andar com documento de documentação ou terá seu direito de locomoção cassado remete aos tempos da Ditadura Militar, quando existia a chamada “prisão para a averiguação”. Já não existe nenhuma previsão legal que permita algo nesse sentido

Estamos diante do arbítrio. Vivemos um período democraticamente complicado do ponto de vista de garantias fundamentais, para dizer o mínimo.”

Por Vinícius Segalla, da Redação da Agência PT de Notícias

Família Marinho usa Jornal Nacional para mobilizar apoio pró-intervenção

Um ditado popular bem conhecido por aqui é “nunca cuspa no prato em que você comeu“. Digamos que trata-se de uma maneira bem tosca de dizer que é preciso sempre manter a gratidão para os que te ajudaram. Nos “dez mandamentos” da Família Marinho, este talvez seja o número um.

As organizações Globo cresceram de mãos dadas com a ditadura militar. Ela serviu ao projeto de unificação nacional promovido pelos generais do “Brasil grande“. Foi a correia de transmissão e legitimação do poder autoritário e se beneficiou disso.

Representante genuína da elite política e econômica, a Família Marinho nunca vacilou em se posicionar na cena política alinhada a esses interesses, que na esmagadora maioria das vezes não é o interesse da população, e nem do país. Democracia, liberdade, direitos sociais, distribuição de renda, soberania, não são objetivos que constem dos mandamentos da Globo, e nem da elite nacional.

Então, não é de se espantar o apoio da Família à intervenção militar no Rio de Janeiro, manifesto em editorial do jornal O Globo – o porta-voz oficial dos Marinho – nesta terça-feira (20): “Intervenção é oportunidade para sanear instituições (…) Sanear essas instituições (polícia militar, civil, e segurança pública) é fundamental para que as ações coordenadas entre as forças federais e as polícias do estado possam surtir efeito, o que não vinha acontecendo. Mas é preciso que elas sejam duradouras. Operações tópicas, realizadas no varejo, já se mostraram ineficazes. Podem funcionar por algum tempo mas, quando as forças se retiram, tudo volta a ser como era antes. Portanto, não se pode cometer o mesmo erro“.

Já preparava esta coluna para falar de como a Rede Globo, através de seus telejornais – particularmente o Jornal Nacional – criou um clima de terror que certamente impulsionou a intervenção. O editorial só veio confirmar o que já estava evidente – a organização que apoiou a ditadura militar, apoia a intervenção militar no Rio de Janeiro.

A história vai mostrar se este apoio foi apenas passivo ou ativo. Infelizmente, sabe-se que, sai presidente, entra presidente (me refiro aos da República mesmo), a Globo tem sido uma eminência com presença constante no Palácio do Planalto (primeiro o pai, Roberto Marinho, agora os filhos). Por isso, duvido que uma decisão como esta, a de decretar uma intervenção militar na segurança pública do Rio de Janeiro, sede das Organizações Globo, tenha sido tomada sem que os chefões do maior grupo de comunicação do Brasil tenham sido consultados.

Um telejornal focado na violência carioca

Para não suscitar dúvidas: é claro que há uma crise social gravíssima no Rio de Janeiro. Essa crise social, por questões históricas, geográficas e populacionais criou as condições para a consolidação de um sofisticado sistema criminoso. A falência do Estado, a inépcia dos governos, a falta de uma política de segurança pública são um alimento para a violência na capital fluminense.

E, esse cenário foi piorado diante de um governo federal que congela gastos por 20 anos e impõe uma agenda de desmonte dos serviços públicos. Vale lembrar que o Rio de Janeiro é uma cidade com forte presença de equipamentos públicos federais (por ter sido até a década de 50 a sede do governo federal). A devassa contra a Petrobras também impacta fortemente a dinâmica da economia no Rio de Janeiro e tudo isso é preciso se avaliar quando se discute os problemas do Rio.

Mas, esta situação de crise social e violência não é, nem nunca foi exclusiva do Rio de Janeiro. O Brasil possui 27 Estados e em todos eles – e em alguns até mais do que no Rio – os índices de violência são alarmantes.

Segundo dados do 11º Anuário de Segurança Pública, realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, divulgado no final de setembro de 2017, o estado do Rio de Janeiro ocupava o 10º lugar no ranking dos estados mais violentos do país (se considerada a taxa de assassinatos por 100 mil habitantes). Em números absolutos, o Rio de Janeiro ocupa a segunda posição, atrás da Bahia. Já, se olharmos apenas para os municípios, a capital fluminense não aparece nem mesmo entre as 30 cidades com maior taxa de homicídios no país, segundo o Atlas da Violência publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea, em 2016.

Família Marinho usa Jornal Nacional apoio pró-intervenção

Mas quem vê o Jornal Nacional pensa exatamente o contrário disso. Para a principal vitrine jornalística do país, a violência do país praticamente se restringe ao Rio de Janeiro.

Assisti pacientemente a todas as reportagens sobre violência veiculadas pelo JN de 01 de janeiro até 16 de fevereiro de 2018, dia em que o desgoverno Temer decretou a intervenção militar no Rio. Em 41 edições do JN, apenas 8 não abordaram temas relativos à violência e segurança. Das outras 33, dez não trataram de questões envolvendo o Rio de Janeiro. Vale registrar que até 9 de janeiro, uma greve da polícia militar no Rio Grande do Norte mereceu a atenção do noticiário. Outro assunto foi a crise envolvendo os presídios de Goiás no início do ano.

Ou seja, de 41 edições do Jornal Nacional, vinte e três trouxeram reportagens sobre a violência do Rio de Janeiro. Na maioria delas, o tom das matérias eram dramáticos, com uma narrativa que destoa do tratamento dado aos demais casos de violência.

A Globo enquadrou este carnaval carioca como o mais violento dos últimos anos. Apesar dos casos mostrados pelo noticiário da emissora – arrastões na praia e roubos de turistas – não ser diferente do que se passou em outros estados. Nenhuma reportagem da emissora buscou mostrar a violência durante o carnaval em Salvador, Recife, Olinda, São Paulo – isso para citar apenas quatro cidades que tiveram grandes blocos de rua.

Ao escolher o Rio de Janeiro como capital da violência e ocultar da sua cobertura os casos de violência que acontecem no restante do país, a Globo criou uma narrativa de pânico e sublinhou na sua cobertura a falta de ação e comando para enfrentar o “crime organizado” no Rio de Janeiro.

O tom de cobrança de ações efetivas estava subjacente a toda a cobertura. Até desembocar no anúncio da intervenção. No dia 16 de fevereiro, mais da metade do tempo do JN foi dedicado ao decreto de Temer. Entre os parlamentares, especialistas e pessoas ouvidas sobre a medida, praticamente todos avalizaram a decisão do governo federal.

As considerações e ponderações, quando apareciam, não eram para alertar para os perigos à democracia ou aos direitos das pessoas, mas sim para os limites da intervenção. A única posição contrária, foi a leitura no final da reportagem pela apresentadora Renata Vasconcelos, em segundos, da posição da ONG Human Rights Watch.

A intervenção militar na segurança pública no Rio de Janeiro pode até não ter – diretamente – o envolvimento da família Marinho. Mas, indiretamente, é certo que o tratamento dispensado pela Rede Globo à cobertura da violência no Rio contribuiu para essa decisão. Que, como já foi amplamente dito, tem graves consequências para a democracia e provavelmente não vai resolver a situação dramática da violência no Rio de Janeiro que sim, precisa de respostas na área da segurança, mas precisa em primeiro lugar de respostas políticas e econômicas para recuperar o papel do Estado como indutor da economia, para gerar empregos e renda e reduzir a situação de penúria do povo fluminense.

A Globo demorou exatos 49 anos para fazer o seu “mea culpa” por ter apoiado a ditadura que se instalou com o golpe de 1964. Em editorial publicado no dia 31 de agosto de 2013, o jornal finaliza afirmando que “À luz da História, contudo, não há por que não reconhecer, hoje, explicitamente, que o apoio foi um erro, assim como equivocadas foram outras decisões editoriais do período que decorreram desse desacerto original. A democracia é um valor absoluto. E, quando em risco, ela só pode ser salva por si mesma.”

Ao que parece, precisaram menos de cinco anos para que a Família Marinho mudasse sua opinião e se esquecesse do que escreveu. Ou, talvez, aquele editorial foi apenas uma posição bastante oportuna para o momento político e não revelasse, de fato, a opinião do grupo.

Talvez daqui a 50 anos vejamos outro “mea culpa” por aí, isso se as Organizações Globo ainda existirem.

fonte: https://www.pragmatismopolitico.com.br