Pelas ruas, pelas armas e pelo elevador: um abatedouro chamado Brasil

Nas contas oficiais, Miguel Otávio Santana da Silva, de 5 anos, não estará na lista dos mortos pela Covid-19.

Vítimas de Covid-19 são enterradas no Rio. Foto: Fabio Teixeira/Anadolu Agency (via Getty Images)

Morto na terça-feira (2), ele é vítima indireta de uma pandemia que já matou quase 35 mil pessoas no Brasil — 1.483 nas últimas 24 horas, segundo dados anunciados ao fim do dia e que não puderam ser divulgados em horário nobre.

Sua mãe, a faxineira Mirtes Renata, não pode fazer faculdade. Precisava ficar perto do filho, mas não pode ficar com ele em casa e nem foi dispensada dos serviços na casa do patrão, que em abril foi diagnosticado com coronavírus.

Foi assim que ele, sua mãe e sua avó foram infectados.

Ele sobreviveu ao vírus, mas não à pandemia. Sem escola, creche ou condições de ficar em casa com a família, ele seguiu acompanhando a mãe até o trabalho num edifício de alto padrão do Recife.

O Recife retratado por Kleber Mendonça Filho em “O som ao redor”, filme que atualiza a violência das relações entre casa grande e senzala que migraram para os latifúndios urbanos.

O Recife de “Aquarius”, filme do mesmo diretor que trata da violência da especulação imobiliária e que propositalmente retirou os espigões de umas certas “torres gêmeas” da paisagem reconstruída da região do cais de Santa Rita, um patrimônio histórico invadido pela obra após uma longa disputa judicial.

Com 41 andares e 134 metros de altura, os edifícios Pier Maurício de Nassau e Pier Duarte Coelho mostraram quem manda na vizinhança repleta de bens tombados pelo Iphan, o instituto do patrimônio histórico e artístico nacional, hoje sob o comando de uma amiga da família Bolsonaro — sem formação na área, mas com muito espírito patriótico.

Os manifestantes que se opunham à obra nada puderam fazer quando o Superior Tribunal de Justiça julgou a causa favoravelmente à construtora em 2011.

As torres foram devidamente demolidas na ficção, mas na vida real continuou movimentando as engrenagens dos moinhos do Brasil colônia versão varanda gourmet.

Foi lá que Miguel da Silva entrou no choro ao se ver longe da mãe, responsável por levar para passear o cachorro da patroa, primeira-dama de um município a mais de 100 km dali.

A patroa estava ocupada fazendo a unha e não queria ser incomodada.

Imagens do circuito interno mostram que ela despachou o filho da faxineira no elevador. Perdido, ele foi parar na casa de máquina, onde chegou a um para-peito de alumínio que se quebrou.

Ele caiu de uma altura aproximada de 35 metros.

Caiu no momento em que pessoas negras, como ele, se mobilizam para dizer que vidas negras importam.

No momento em que o vídeo de um homem negro asfixiado pelo joelho de um policial branco nos EUA correm e reviram o mundo ao avesso.

No momento em que, no Brasil, as vítimas preferenciais da pandemia, que dá a uns o direito à quarentena e a outros, o vírus e as balas de operações mal (ou bem?) formuladas, saem às ruas para gritar que suas vidas importam.

Um momento em que a região nordeste, onde vivia Miguel, vê R$ 83,9 milhões do Bolsa Família migrarem para a Secretaria de Comunicação e bancar campanhas institucionais sob o comando de um secretário público que manteve negócios particulares com emissoras amigas e beneficiárias de verbas oficiais de comunicação — e que acabam de ver atendido um pleito antigo para levantar dinheiro com sorteios em TV aberta.

E que vão elogiar e, se preciso for, tirar do ar noticiário sensível à imagem do presidente que não quer ser criticado.

O presidente patriota que chamou a pandemia que matou 35 mil compatriotas de gripezinha, que boicotou os esforços pelo isolamento, que mandou a vida voltar ao normal, como normal estava a vida num belo apartamento das torres gêmeas do Recife, que agora chama o morticínio de “destino” e https://br.noticias.yahoo.com/bolsonaro-quem-sao-os-verdadeiros-terroristas-102615649.htmlos que se rebelam contra o morticínio de “terroristas”, “idiotas”, “marginais” e “viciados”.

Neste enredo macabro, não dá sequer para falar em culpados. Não foi o monstro que criou este caldo de miséria e abandono, mas o caldo de miséria e abandono que criou um monstro. Vários. E eles estão ocupados demais cuidando das próprias unhas enquanto um país inteiro tratado como animais vai ao abate.

Miguel sobreviveu ao vírus, mas não ao que os autômatos incapazes de sentir chamam de “destino”. Na dor da gente que às vezes sai no jornal, ele é só mais uma vítima de um país repleto de Kaykes, Ágatha, Anna Carolina, João Pedro, Evaldo, Anderson, Marielle.

Neste país, o abate está por todo lado. Está nas casas crivadas pela bala. Está na portaria que estende o armamento como única resposta à crise. Está no liberou-geral do comércio no momento mais agudo da contaminação. E está no elevador dos prédios high tech fundados no solo movediço da velha escravidão.

Por Matheus Pichonelli

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