“Precisamos achar o lugar do rompimento do silêncio e compreender que pior é não falar”
Sempre fui uma criança muito silenciosa. O meu “não dizer” representou e ainda representa um grande emaranhado de questões e conflitos internos profundos. Perceber-se na falta de discurso e dizer-se em voz alta é um ato de rompimento dificultoso, que acredito que ocupa a vida de muitas mulheres negras. Nos espaços de silêncios, em algum momento, todo o “não dito” vem, se arrasta conosco e é realmente devastador como o “calado” pode sufocar profundamente, afetar seu corpo, mente e existência.
O racismo opera em cada um de nós de formas distintas em cada espaço afetivo, interno e pessoal. A ótica racista se instala e, se o cuidado não for atento, começa a falar por nós: em nossos corpos, vozes e lugares sociais. Quando finalmente, após muita investigação, fui capaz de compreender do que se tratavam meus silêncios de mulher negra, me dei ao choro. O que é algo raro e caro para um corpo compreendido socialmente como “mulher forte”, deixar vulnerabilizar é uma lida física e emocional em que ainda escolho os lugares onde vou deixar meu choro, porque aprendi muito cedo a realidade cruel do corpo submisso no Brasil racista: saber se portar. Assim, o choro ficou travado em mim.
Encontrei-me com escritoras negras capazes de dar nome a parte do silêncio instaurado em mim. Compreendo do que se trata: dou nomes ao que me calou e me digo em voz ciente de potência e do lugar de mulher negra que deve ser ouvida. Compreendo, ainda, que tentarão nos convencer do contrário a todo tempo. A ideologia racista de uma estrutura é capaz de nos impregnar tão completamente que nos separa de nós mesmos e nos isola em pensamentos que não nos pertencem, incorporados e normalizados na educação. A questão, dentre muitas, é identificar onde estão os seus espaços de silêncio e de que forma se tornaram amarras, bem como, de que modo nos afeta e o que podemos fazer nesse sentido, que é social e interno.
No ensaio “A poesia não é luxo”, Audre Lorde fala sobre como a poesia é parte essencial da vida das mulheres: “ela cria o tipo de luz sob o qual as nossas esperanças e nossos sonhos de mudança, primeiro como linguagem, depois como ideia e depois como ação mais tangível. É da poesia que nos valemos para nomear o que ainda não tem nome, e que então pode ser pensado. Os horizontes mais longos das nossas esperanças e nossos medos são pavimentados pelos nossos poemas, esculpidos nas rochas que são nossas experiências recentes”. Ainda com esse ensaio nos ensina a importância do encontro com nossa ancestralidade e de que como isso nos remete a “apreciar nossos sentimentos e lidar com fontes ocultas do nosso poder”.
Já em “A transformação do silêncio na linguagem e na ação”, o Audre Lorde conta como uma experiência de uma doença grave a fez refletir sobre sua vida e seus silêncios. Diante da iminência da morte, se deu conta de que todos os medos que carregava jamais a salvariam de um câncer. Acompanho a linguagem dessa extraordinária autora para dizer que nós, mulheres negras, nos calamos por muitos motivos: por medo “eu temia que questionar ou me manifestar de acordo com minhas crenças resultaria em dor ou morte. Mas todas somos feriadas de tantas maneiras, o tempo todo, e a dor ou se modifica ou passa. A morte, por outro lado, é o silêncio definitivo”. Audre Lorde ensina, ainda, como a transformação de silêncios em palavras é algo gradativo para que a linguagem se transforme em ação. A grande lição pessoal de transformação o silêncio em linguagem é que as palavras são poderosas e vão tomando forma fora de nós, para além de nossos imaginários amedrontados e retidos.
Pode demorar muito tempo até a construção do falar sem medo ou pode ser que algum grau de medo nos acompanhe por toda vida, mas o fato é que assim como Lorde nos diz que “fomos ensinadas a respeitar mais o medo do que nossas necessidades de linguagem e significação” precisamos achar o lugar do rompimento do silêncio e compreender que pior é não falar.
E quando, então, falamos em voz alta, não temos mais retorno.
* As citações são do livro “Irmã Outsider”, de Audre Lorde. Publicado no Brasil em 2019, pela Editora Autêntica, com tradução de Stephanie Borges.
Fonte: GELEDÉS