Diante da crise financeira, cortes no orçamento e falta de apoio do município pela ausência de políticas públicas, a 13ª edição do Festival Aldeia do Velho Chico resistiu abordando nossa pior crise, como bem apontou Lázaro Ramos na FLIP deste ano: a crise civilizatória. A urgência é o mergulho nas relações sociais humanas para superar as desigualdades e desconstruir preconceitos que vêm historicamente silenciando e invisibilizando pessoas por meio da barbárie da fome, da falta de oportunidades e dos genocídios. Mulheres, negros, negras, indígenas, LGBT’s, nordestinos protagonizaram expressões artísticas e diálogos sobre processo criativo e suas subjetividades emergem à cena em caráter de urgência para compor uma programação contestadora e norteadora de caminhos.
Concluiu-se no sábado, dia 12 de agosto, uma diversa programação com espetáculos de teatro e dança, shows, intercâmbios, ações de literatura e gastronomia, rodas de conversas, oficinas, mostra de cinema e intervenções urbanas como a performance internacionalmente conhecida Cegos, do grupo Desvio Coletivo (São Paulo), em que “homens e mulheres, em trajes sociais, cobertos de argila e de olhos vendados, caminham lentamente, interferindo poeticamente no fluxo cotidiano da cidade”. Em Petrolina, a performance percorreu, no penúltimo dia de Festival, espaços institucionais da cidade provocando estranhamento crítico na paisagem, sobretudo de instituições políticas, jurídicas, bancárias e religiosas, representativas da ordem e do progresso que na prática reforçam a exclusão e as desigualdades através de suas manobras, leis, regras e dogmas, as roupas formais e os corpos cobertos de lama e os gestos automatizados nos conduzem a leitura de uma sociedade petrificada e degenerada eticamente.
O Aldeia do Velho Chico proporcionou em 12 dias à aldeia do Vale do São Francisco o direito ao grito, ao grito pela vida do rio que seca e pela vida da nossa humanidade esgotada, enlameada na negação da existência plena de democracia e respeito à diversidade da natureza e dos seres humanos, o que pôde ser contemplado desde o primeiro mergulho do Festival quando a mesa de debatedores discutiu a racismo presente no tema “Protagonismo Negro” e na saudação ao rio feita no cortejo de abertura pelo reisado do comunidade quilombola da Mata de São José de Orocó-PE. O grito também é pelo direito à vida em comunidade. Os territórios do Aldeia desvirtuam a lógica do centro e se emaranham pelo Vale em redes de trocas de experiências. Em Petrolina, Juazeiro e Lagoa Grande o Aldeia ocupou espaços das periferias e comunidades ribeirinhas e quilombolas e os artistas destes, por sua vez, ocuparam os espaços do Sesc, no centro da cidade, era uma só aldeia em que afetos se estreitam ao tempo que as possibilidades de fazer arte e de resistir se ampliam.
O clima de retrocessos que se instala no país com a projeção de pautas conservadoras nos parlamentos e discursos de ódio causam uma sensação de instabilidade no estado democrático de direitos; a visão do Rio São Francisco definhando pela exploração predatória de seus recursos nos deixam desolados. O Festival e os encontros que ele promove por meio da experiência de comunhão nos ensinam que a resposta às mazelas de nosso tempo tem de ser de coragem e muita esperança, afim de refletir sobre a necessidade de se construir novas relações dos seres humanos ente si e a natureza.
Mais da metade da programação do Aldeia do Velho Chico é composta por artistas locais das mais diversas linguagens, embora estes artistas não tenham incentivo do município no fomento à sua produção, de modo aguerrido insistem no fazer artístico e encontram no Festival espaço para difusão de seu trabalho, constituindo uma relação profissional que incentiva e impulsiona tais produções. Pelo compromisso do Festival Aldeia do Velho Chico com as dimensões social, econômica e cidadã da cultura, o mandato coletivo do professor Gilmar Santos apresentou o projeto que incluiu o festival no calendário oficial de eventos de Petrolina, sancionado pelo prefeito Miguel Coelho (Lei 2904/2017), um reconhecimento do trabalho desenvolvido pela equipe do Aldeia nesses 13 anos de valorização da cena local e da promoção de intercâmbios com o panorama nacional. O trabalho do Sesc não substitui – e nem deve -, o papel da Secretaria Municipal de Cultura, mas na ausência completa de políticas públicas permanentes e continuadas, como um Plano Municipal e um Fundo de Fomento destinados à Cultura, acaba por exercer um papel fundamental para existência e manutenção de uma cena local pulsante, que mergulha nas questões mais profundas da arte e da vida.
Texto: Cristiane Crispim (atriz, produtora cultural e arte-educadora)