“Lutar por políticas públicas de cultura, que reafirmem a importância histórica do nosso povo, sua memória, ancestralidade, seus valores, crenças, identidades e as importantes contribuições para o desenvolvimento desse país, deve ser estratégico para o movimento negro e movimentos antirracistas”
Quando em 2010 os jovem José Alex e Diego, negros, moradores do bairro João de Deus, foram “confundidos” com assaltantes de um posto de combustível na cidade e brutalmente torturados por policiais civis de Petrolina, a vida dos dois foi exposta à violência do racismo institucional. Alex não suportou a tortura e veio a falecer. Onze anos depois, infelizmente, o que o Atlas da Violência nos informa é de que essa situação contra o povo negro só piorou: de cada 100 pessoas assassinadas no país, 77 são negras.
Poderíamos listar milhares de outras situações, a exemplo de George Floyd, João Pedro, o menino Miguel, Kathlen Romeu, Evaldo Rosa, e de tantos outros casos que provam o quanto o racismo mata, e o quanto a vida do povo negro está cotidianamente ameaçada por versões diversas desse mal histórico que, lamentavelmente, estrutura a nossa sociedade, permeia a cultura, as instituições e o cotidiano com uma carga de ódio, ignorância e falsas ideias que segregam, excluem e banalizam o valor da vida.
Não é possível pensar e defender a vida, bem maior, princípio e direito fundamental, previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos e na Constituição Federal de 1988, sem considerarmos o quanto no Brasil esse direito é atacado pelo racismo. Bem como não é possível pensarmos em desenvolvimento, democracia, igualdade de todos e todas perante a lei, enquanto houver racismo. Nesse sentido, para pensarmos no direito à vida do povo negro, é preciso considerar as necessidades concretas e fundamentais para que essa vida seja constituída de dignidade na sua plenitude.
O direito à saúde é basilar na vida de um povo e releva o grau de justiça ou injustiça promovida pelo Estado e a sociedade. A pandemia do corona vírus (covid-19), que já ceifou mais de 636 mil vidas, veio apenas confirmar o quanto o direito à saúde da população negra sempre foi negligenciado, desprezado e portanto, injustiçado. Segundo pesquisa da Rede Nossa São Paulo, levantamento realizado entre janeiro e julho de 2021, as mortes de pessoas negras por covid-19 naquele Estado foram quase duas vezes maior que a de brancos.
Este estudo mostrou também que quanto menor a renda, maior é o coeficiente de mortalidade. Uma das explicações é de que, com o maior tempo de exposição, por exemplo em transporte público, a população pobre, trabalhadora, maioria negra, está mais exposta a maior risco de contaminações, inclusive os mais jovens.
Essa situação poderia ser facilmente aplicada a várias outras que envolvem a saúde do nosso povo, a exemplo das fazendas de fruticultura irrigada de Petrolina e Juazeiro, Lagoa Grande, Santa Maria da Boa Vista, Mirandiba, onde são expostos a grande quantidade de venenos e ganham salários baixíssimos, ou nas usinas de cana de açúcar, realidade igualmente perversa.
No geral, essa maioria trabalhadora, negra e periférica, vive em bairros sem infraestrutura básica e quando adoecem se deparam por vezes com a desumanidade no atendimento nas unidades de saúde, onde comumente não dispõem de médicos, ou esperam até a morte para conseguir um simples procedimento.
Só é possível superar parte dessas mazelas quando um dos direitos sociais mais importantes da nossa Constituição for cumprido e democraticamente garantido à maioria da nossa população: o direito à terra. Sabemos que desde a Lei de Terras de 1850, a população negra foi impedida de produzir sua existência de forma livre e digna. A escravização de corpos negros e tantas violências impostas ao nosso povo, nas eras coloniais ou modernas do capitalismo, tem no roubo e na concentração de terras, pela elite branca racista, um instrumento estratégico para a manutenção de privilégios, da exploração e aprofundamento das desigualdades.
As consequências da especulação imobiliária nas zonas urbanas ou da grilagem de terras em áreas rurais, faz do povo negro a maior parte dos sem-teto e sem-terra desse país. Petrolina e Juazeiro são exemplos da explosão de ocupações na luta por moradia.
Mesmo os quilombolas, que historicamente conquistaram suas áreas, têm encontrado grande dificuldade para a regularização fundiária. Em 2020, das milhares de comunidades Quilombolas espalhadas pelo país, apena 29 foram certificadas pelo governo Bolsonaro. Em 2019 apenas uma conseguiu titulação, ou seja, quando o processo torna-se completo.
Sem acesso à terra, falta trabalho, emprego digno e pão. Com golpe o de 2016 e os governos Temer e Bolsonaro, ficou evidente a destruição de políticas sociais desenvolvidas pelos governos Lula e Dilma. A crise sanitária da covid-19 aprofundou a situação e hoje vemos o país voltar ao mapa da fome, mais de 19 milhões de pessoas vivenciam a insegurança alimentar e nutricional. É nesse ambiente que a cultura da violência aprofunda ainda mais as injustiças contra o nosso povo.
Portanto, lutar por políticas públicas de cultura, que reafirmem a importância histórica do nosso povo, sua memória, ancestralidade, seus valores, crenças, identidades e as importantes contribuições para o desenvolvimento desse país, deve ser estratégico para o movimento negro e movimentos antirracistas. Somente assim é possível pleitear uma cultura de justiça e paz. Não é à toa que os racistas, fascistas e genocidas que estão no governo federal atacam tanto a nossa história e valores culturais.
O Mandato Coletivo (PT-Petrolina), representado por esse vereador, juntamente com a Frente Negra do Velho Chico, em 2020 conseguiram, depois de muita luta, instituir em Petrolina (PE) e Juazeiro (BA) com o vereador Tiano Félix, o Estatuto da Igualdade Racial e de Combate à Intolerância Religiosa, o que foi uma grande conquista. Mas nós queremos que todos esses direitos previstos no Estatuto saiam do papel, para garantir mudanças e melhorias nas condições de vida da nossa população.
Dito isto, creio ser muito importante que as organizações negras e antirracistas do país, a exemplo da Frente Negra do Velho Chico, incendeiem esse novembro com muita defesa da nossa cultura, exijam o fim do governo racista do Bolsonaro e ações concretas que façam valer o nosso grito de indignação: vidas negras importam!
*Por Gilmar Santos