Ditadura nunca mais: 56 anos do golpe civil-militar que nos afeta até hoje

É um Estado que, se não mata, deixa morrer pela negligência.

Soldados da PM batem nos estudantes que protestavam contra a morte do secundarista Édson Luís no Rio de Janeiro, em março de 1968. Foto: Evandro Teixeira

Vivemos uma crise global profunda e sem precedentes na história recente da humanidade. Uma crise dessa magnitude exige de todos nós reflexões igualmente profundas que possam contribuir para a reformulação do pacto civilizatório e das bases de convivência coletiva.

É necessário um direcionamento para a construção de uma nova ordem social baseada na coletividade. Mais do que nunca, lideranças preparadas para lidar com crises globais são fundamentais para propor revisões dos princípios de uma democracia ainda jovem e frágil, para que nossa sociedade caminhe para uma democracia forte e com valores compartilhados por todos e para todos.

Subestimar crises sanitárias, somado ao despreparo para enfrentá-las, é característico de regimes autoritários. É ainda pouco conhecida a epidemia de meningite que acometeu a cidade de São Paulo, entre 1971 e 1975, durante o governo do ditador Emílio Garrastazu Médici. Na época, o aumento vertiginoso de casos que se alastrou pela cidade e chegou a um índice de letalidade de 14% em 1972, foi acobertado pela censura e pela cumplicidade de autoridades. As principais vítimas foram crianças de até cinco anos, e suspeita-se que a maioria dos mortos pela meningite tenha sido enterrada na vala clandestina de Perus — uma chaga aberta na capital paulista.

O Brasil precisa construir sua memória, defender a verdade e promover a reparação e a justiça para o genocídio indígena, os três séculos de escravidão, a ditadura militar e o genocídio das populações negras, pobres e periféricas.

Estudante é carregado por oficiais do exército após confronto entre militares e estudantes no Rio de Janeiro. Foto: Evandro Teixeira

A violência do Estado produziu e produz vítimas de várias formas. No passado e no presente, torturas, execuções sumárias, desaparecimentos forçados e tratamentos cruéis e degradantes são uma face da moeda, mas não podemos esquecer das vítimas decorrentes da misoginia, do feminicídio, da xenofobia, da perseguição contra a liberdade de expressão, da transfobia, da intolerância política oriunda de atos estatais; enfim, das diversas expressões do autoritarismo.

Também é preciso enfatizar as vítimas de violência social e política do Estado, que agrava a desigualdade social e enfraquece os serviços públicos relevantes, tal como na saúde e na educação e, principalmente, os serviços de proteção social e econômica diante de tal cenário. É um Estado que, se não mata, deixa morrer pela negligência e desmonte das políticas públicas de proteção aos mais vulneráveis.

Cavalaria da polícia avança sobre estudantes que realizavam missa pela morte do estudante Edson Luís, em 1968. Foto: Evandro Teixeira

Vivemos em um país marcado por uma cultura histórica e estrutural de violência. No entanto, há vozes que não se calam diante de um silêncio ensurdecedor. São vozes que as lutas amplificam no tempo e que as memórias impregnam nos corpos.

A nossa sociedade precisa revisitar seu legado autoritário e violento para transformar as instituições em defensores de um Estado democrático de Direito. Ao longo da ditadura militar, de 1964 a 1985, foram milhares de indígenas e camponeses mortos e desaparecidos; resistentes políticos presos, torturados, assassinados e muitos deles desaparecidos até o dia de hoje; milhares despejados de suas casas em periferias e favelas; e um sem fim de pessoas perseguidas, presas, torturadas e mortas em um sistêmico terrorismo de Estado.

A ideologia do negacionismo e revisionismo pretende impor uma democracia sem o direito à memória, à verdade e à justiça. Assim como sem direitos e sem proteção social e econômica para aqueles que mais necessitam. Saúde, trabalho digno, bem como a proteção ampla e irrestrita do Estado, não deveriam ser privilégio de poucos, mas direito de todos.

Esse é o momento de o Supremo Tribunal Federal pautar na agenda pública o debate e a reinterpretação da Lei da Anistia, seguindo os acordos internacionais que o Brasil ratificou e assinou de forma voluntária, para que seja possível o julgamento e a responsabilização dos que foram os artífices de crimes de lesa humanidade. Sobretudo, para que agentes de Estado não permaneçam na certeza da impunidade.

É imprescindível resgatar a memória e continuar lutando para que a violência de Estado não siga se repetindo, aos brados de “ditadura, nunca mais”.

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Por Eugênia Augusta Gonzaga, Maurice Politi e Rogério Sottili
Via Folha de São Paulo