Um pouco sobre o livro que Leonardo Boff levou para Lula na prisão

“Sentir e compartilhar a dor com os pobres pode ser uma grande escola revolucionária e libertadora ”

Ao tentar visitar o presidente Lula, o teólogo e filósofo, Leonardo Boff, entregaria dois livros ao amigo: um de sua autoria, “O Senhor é Meu Pastor – Consolo Divino para o Desamparo Humano”, e um outro com o título, “A missão do povo que sofre – tu és meu servo!”,  de autoria  de Carlos Mesters, frade carmelita, de origem holandesa,  e um dos principais estudiosos bíblicos do método histórico-crítico. Esse último título mexeu com as minhas memórias e me fez tirar do baú lembranças afetivas e reflexões sobre o papel do cristianismo na vida dos empobrecidos e de lideranças políticas do nosso país.

O livro de Mesters remete ao contexto do Cativeiro da Babilônia, aproximadamente 590 a.C , período em que as elites hebraicas foram aprisionadas à mando do  imperador Nabucodonosor. O motivo foi a recusa do rei Joaquim de Judá em pagar tributos ao governo babilônio.  É um período que expressa as contradições da comunidade hebraica, impõe a necessidade de pensarem sobre os ensinamentos deixados pelos antepassados e o projeto de sociedade a ser defendido:  de acomodação aos privilégios de uma minoria ou de libertação dos pobres diante das estruturas de opressão.  O sofrimento do povo hebreu e do povo brasileiro são as molas propulsoras para as reflexões do frade carmelita.

A história do livro começa quando Mesters fez uma visita ao Pe. Alfredo Kunz, carinhosamente conhecido por Alfredinho. Esse, nascido na suíça, serviu o exército francês durante a Segunda Guerra, tornou-se prisioneiro dos nazistas num campo de concentração da Áustria, onde trabalhou como cozinheiro, passou a estudar a Bíblia e dar assistência aos doentes. Em 1954 foi ordenado padre na cidade de Paris. 1968 veio para o Brasil porque se dispôs a ajudar os pobres fora da Europa. Foi morar na cidade de Crateús-CE, onde viveu intensamente a caridade junto aos empobrecidos do semiárido nordestino. Mais tarde migrou para  São Paulo, onde passou a viver com as pessoas em situação de rua na cidade de Santo André.  Tinha no livro do profeta Isaías e na imagem do “servo sofredor” suas principais referências para compreender a vida dos pobres. O sofrimento que vivenciou e partilhou o levou a fundar a Irmandade do Servo Sofredor.

Em 1976, ao receber em casa o estudioso carmelita, Alfredinho sofria de fortes dores na coluna, proporcionada por uma hérnia de disco.  Segundo Mesters

“a dor entrou nele como a água entra numa esponja. Isso já durava cinco dias e cinco noites, sem parar um só instante. Deitado na cama, ele me disse:  esses dias fiquei pensando muito no sofrimento. Que sentido vou dar a esta dor, da qual não escapo nem vejo o porquê? Você sabe? Garanto a você que neste Brasil tem muita gente como eu. Gente que apenas sofre, sem porquê e sem saber porquê!”.

O padre associou a dor dos pobres ao personagem do livro do profeta Isaías, lembrando que o povo brasileiro era chamado a ser “ servo sofredor”, através do qual a justiça e a libertação seriam efetivadas. Nesse momento ele questionou, “você entendeu o que eu quero dizer?”.  Com os olhos fixos para o exegeta da Bíblia, disse:

sua cara me diz que não me entendeu. É que você não está sofrendo o que eu sofro nem o que o povo sofre. Você só tem ideias sobre o sofrimento, mas não tem o sofrimento. Aquilo que acabo de dizer pode parecer loucura ou escândalo, como foi loucura e escândalo a cruz de Cristo. Mas o sofrimento tem que ter um sentido! Na luta pela justiça e pela fraternidade dever haver lugar para todos! (…)”

Foi assim que sugeriu ao carmelita o estudo do livro profético e que, em sintonia com as dores do povo,  escrevesse a obra “A Missão do povo que sofre”. Porém, o advertiu:

“Mas tome cuidado! Não entre nunca sozinho na Bíblia. Você se perderia e não encontraria nada. Leve consigo na sua lembrança a dor do povo a que pertence!”.

Durante cinco anos Mesters viajou o país com suas palestras e cursos junto às comunidades eclesiais de base e testemunhou muitas histórias de sofrimento. Seus estudos e experiências mostram que as lamentações e dores dos hebreus no tempo do cativeiro são atualizadas nas dores dos pobres espalhados pelo Brasil. As histórias que conta no seu livro traduzem o sofrimento de muitos nordestinos que saíram do cativeiro da fome em direção às ilusões metropolitanas, marcadamente durante os anos 50 aos 70.

É nesse percurso histórico que Eurídice Ferreira de Melo, a dona Lindú, com os seus sete filhos, fogem da seca e da fome em Pernambuco e vão para São Paulo em busca de melhores condições de vida. Dentre os seus filhos, Luís Inácio da Silva,  o Lula, virou operário de fábrica e tornou-se uma das maiores lideranças sindicais e políticas do Brasil.

De formação católica e muito próximo aos religiosos da Teologia da Libertação, Lula bebeu da mesma fonte que animava as comunidades eclesiais de base:  sofrimento, sabedoria popular e fé. Sofreu e aprendeu com a dor dos pobres. Lutou, resistiu, e quando pôde, como Presidente da República,  ajudou milhões de brasileiros a se libertarem do sofrimento.

Lula cometeu erros e equívocos quando se encantou com os benefícios dos senhores da “babilônia brasileira”. Hoje é punido e está no cativeiro, não pelos seus erros, mas por sua opção preferencial pelos oprimidos. Muito provavelmente conheceu Alfredinho em Santo André. Possivelmente participou de alguma formação orientada pelas ideias do Carlos Mesters.

O golpe midiático-parlamentar-empresarial que derrubou o governo da presidenta Dilma e impôs o governo ilegítimo de Michel Temer, mostra que a dignidade do povo pobre e sofredor está sendo aprisionada no cativeiro neoliberal e fascista. Somente uma liderança que vivencia e compreende o sofrimento pode representar a maioria do nosso povo. É por essa razão que o Lula expressa a luta do “servo sofredor”. Por isso, também, tão odiado pelas forças do capital e do fascismo,  estimulados pela tríade:  Globo, Moro e  Lava Jato.

Porém, muito mais que o Lula, quando cada pobre sofredor expressar sua indignação contra os cativeiros em operação nesse Brasil do golpe, a justiça deixará de ser conduzida pelos setores que historicamente desdenha e explora quem sofre.  Talvez por esse temor a juíza, morista, Carolina Lebbos,  não tenha permitido a visita do ativista dos direitos humanos, agraciado com prêmio Nobel da Paz,   Adolfo Pérez Esquivel, 86 anos, e do téologo Leonardo Boff, 79 anos.  Esse, sabiamente, reagiu denunciando a falta de humanidade e a prepotência de uma juíza terrena diante do juízo divino.

Quando iniciei minha atuação na Pastoral da Juventude do Meio Popular tive oportunidade de participar das aulas do frade carmelita. Nessa época as comunidades e pastorais ainda compartilhavam um pouquinho daquela atmosfera do Concílio do Vaticano II.  A forma simples de como o velho frade contava a história da Bíblia e do povo nunca saiu da minha memória.  Relendo “A missão do povo que sofre” pude reaquecer as lembranças.

Em meados dos anos 90 conheci Alfredinho, quando foi tratar da sua saúde no Recanto Madre Paulina (Petrolina-PE). Com a cabeça tomada pelos cabelos brancos, beirava os 80 anos. Singelo, sábio e de ternura radiante,  concedeu-me uma entrevista que até hoje guardo numa velha fita K7. Falou das suas experiências e lutas, denunciou o imperialismo, origem da maior parte dos sofrimentos.

Nesses tempos de desorientação e crise política, fico com a lição desses  profetas: sentir e compartilhar a dor com os pobres pode ser uma grande escola revolucionária e libertadora.

Lula Livre! Marielle Vive!

 

Referências:

BAVAREL, Michel; SILVA, Nara Rachid. Se você soubesse a alegria dos pobres.São Bernardo do Campo: Nhanduti Editora, 2014.

MESTERS, Carlos. A missão do povo que sofre. Petrópolis: Vozes, 1994.

 

*Gilmar Santos é professor de História e vereador (PT) em Petrolina-PE.