Contra a “ideologia de gênero” ou contra a igualdade pregada na Constituição brasileira?

No último dia 7 de dezembro a Câmara Municipal de Petrolina aprovou a lei que “proíbe as atividades pedagógicas que visem à reprodução do conceito de IDEOLOGIA DE GÊNERO, na grade de ensino da rede municipal e da rede privada de Petrolina”. Essa lei, idêntica a outras apresentadas em diversas câmaras municipais brasileiras, em uma ação orquestrada de desrespeito a nossa legislação nacional, impõe o veto a abordagem das questões de gênero em sala de aula, tendo por base concepções particulares, e em sua maioria, religiosas, assim como ficou demostrado na sessão de aprovação onde a bíblia tornou-se a base do argumento do vereador Elias Jardim, proponente do projeto.

Mas o que seria essa abordagem de gênero tão temida? E mais, o que seria essa “Ideologia de gênero” falada na lei?

Primeiramente devemos compreender que não existe “ideologia de gênero”.  Esse conceito, fundado por grupos conservadores, que falseia categorias explicativas elaboradas na academia, tem como intenção excluir a diversidade do espaço escolar e a problematização das desiguais relações de poder que se estabelecem entre o que a sociedade compreende como feminino e masculino.  Falar de uma “ideologia de gênero” é negar que as demais concepções de educação, sexualidade e família, são também ideológicas, pois construções sociais; e assim também negar que nomeamos o mundo de forma múltipla e diversa.

Pelo proposto nessa lei a heteronormatividade compulsória estará resguardada, em todos os seus aspectos, na medida em que essas relações não serão debatidas, nem os sujeitos LGBTTQIs visibilizados enquanto participes de uma sociedade e escola diversa.  E pior, ao calar, ela invizibiliza a discriminação que essa população sofre, tanto dentro, quanto fora das escolas. Incluindo a não aceitação de outras formas de nos relacionarmos com nossa sexualidade e o entendimento de múltiplas concepções familiares, para além do aceito por concepções religiosas conservadoras. Negar esse debate nas escolas é corroborar para continuidade da eliminação de corpos LGBTTQIs, especialmente de travestis, transgêneros e transexuais que tem menor expectativa de vida no Brasil.

A ampla disseminação da falsa premissa da “ideologia de gênero”, vista como a desconstrução dos papéis de gênero tradicionais e, por consequência, da família, dentro dos ambientes educacionais, despertou uma espécie de pânico moral, retrocesso e demonização do “inimigo”, quando o que se pretendia com a “promoção da igualdade […] de gênero e de orientação sexual” era simplesmente contribuir para “a superação das desigualdades educacionais” (BRASIL, 2012d) que comprovadamente existem entre os gêneros, em consonância com as décadas de debates, acordos e políticas públicas estabelecidos democraticamente a fim de promover a equidade de gênero.[1]

Para compreender as distorções conceituais presentes nessa lei, bem como a insconstitucionalidade dos atos nela propostos, temos que analisá-la a luz de nossa Constituição Federal de 1988, e da Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1996. Em relação à Constituição Federal essa lei fere os direitos a igualdade (art. 5o, caput), à vedação de censura em atividades culturais (art. 5o, IX), à laicidade do estado (art.19, I), à competência privativa da União para legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional (art. 22, XXIV), ao pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas (art. 206, I) e ao direito à liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber (art. 206, II).

Em seu primeiro artigo a lei diz que “Fica Proibida a disciplina Ideologia de gênero, bem como toda disciplina que vise orientar a sexualidade dos alunos, ou tente extinguir o feminino e o masculino como gênero humano”. A primeira coisa que devemos frisar é que no âmbito educacional cabe a União legislar, e não ao município, sobre as leis de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Uma lei menor não pode vetar, ou negar, algo presente numa lei maior, no caso nossa Constituição. É preciso ficar atento em como está organizado o currículo da educação básico, nele não está previsto nenhum disciplina com tal nome. O currículo da educação básica se organiza em áreas disciplinares agremiadas em macro campos do conhecimento, cotando também com uma área diversificada. As questões de gênero e sexualidade devem então transversalizar todos os campos curricular.

Em seu artigo segundo a lei versa sobre exposição ou distribuição de livros, didáticos ou não, que se refiram direta ou indiretamente a Ideologia de gênero.  Contudo, ao proibir divulgação e utilização de material didá-
tico com conteúdo relativo à “ideologia de gênero”
a lei municipal desrespeita tanto a competência privativa da União para legislar
sobre Diretrizes e Bases da educação nacional, já citada, quanto a liberdade de cátedra ao proibir educadoras e educadores de escolherem, dentro dos limites do Programa Nacional do Livro Didático, o material que mais lhes parecer adequado.

Em seu parágrafo único proíbe, ainda, nas bibliotecas a exposição ou distribuição de quaisquer livros didáticos ou não, que versem ou se refiram direta e indiretamente a “Ideologia de gênero,” diversidade sexual e educação sexual. Responsabilizando gestoras e gestores da unidade escolar, da biblioteca e secretaria municipal pelo não cumprimento do previsto na lei. Ai incorre em dois problemas sérios, que precisam ser frisados. O primeiro é a censura, pois o art. 5o, IX, da Constituição da República, assegura ser livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença. Esse
preceito conjuga-se com o art. 220, § 3o, segundo o qual “é vedada
toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística”. O segundo problema é o estímulo a denúncia e controle entre pares. As educadoras e educadores fariam, então, papel de vigias e fiscais de seus iguais, estimulando denúncias e obrigando-as, assim, a incorrerem contra a liberdade de expressão e de cátedra, desvirtuando o verdadeiro papel da gestão escolar que seria auxiliar nas demandas pedagógicas e administrativa da comunidade escolar.

Ferindo toda a legislação acima citada, a lei ainda apresenta como  justificativa para os atos propostos diz que no artigo 2º do Plano Nacional de Educação (PNE, 2014), é proibida a utilização de qualquer tipo de ideologia na educação nacional, em especial o uso da ideologia de gênero. O que é mentira, visto que essa proibição em nenhuma parte do Plano.

O Plano Nacional de Educação não tem poder de vetar a abordagem de gênero nas escolas, pois é um documento estratégico, estabelecem as metas decenais (2014-2024) do nosso sistema educacional, mas que não se sobrepõe a Lei de Diretrizes e Bases, nem a nossa constituição. E esse mesmo plano, citado como argumento para a exclusão das discussões de gênero pela lei municipal, em seu artigo 2º, erroneamente citado na lei, prevê a implementação de programas e políticas educacionais destinadas a combater “todas as formas de discriminação” existentes nas escolas e prevê a promoção dos direitos humanos e da diversidade na educação brasileira.

O texto da lei ainda falha ao colocar que segundo o orientado pelo MEC, como base no documento do CONAE “os indivíduos humanos não devem se prender ao sexo biológico, mas devem compreender sua condição sexual como um profundo sentimento de pertencimento ao gênero que escolherem”. Nenhum dos documentos partilhados pelo MEC traz essa frase ou dizeres, colocados nessa lei com a pura intenção de causar pânico moral na sociedade e nas vereadoras e vereadores da casa. As concepções de gênero presentes nos Parâmetros Curriculares Nacionais para os diversos níveis de ensino postulam a problematização das relações de poder estabelecidas entre os diferentes gêneros, bem como a inclusão de todas e todos na escola, respeitando suas identidades e diversidades.

Lembramos que direito à educação para a igualdade de gênero, raça e orientação sexual e identidade de gênero tem base legal na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB/1996), nas Diretrizes Nacionais de Educação e Diversidade, nas Diretrizes Curriculares do Ensino Médio (art. 16), elaboradas pelo Conselho Nacional de Educação, e na Lei Maria da Penha (2006). Esse direito também está previsto nos tratados internacionais de direitos humanos com peso de lei dos quais o Brasil é signatário: a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança (1989), a Convenção Relativa à Luta contra a Discriminação no Campo do Ensino (1960), a Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (1979), a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (1968) e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966), entre outros.

Por fim, esperamos que nossas câmaras municipais sejam mais qualificadas para lidar com nossos sistemas de ensino. Que a Secretaria Municipal de Educação de Petrolina salvaguarde nossa legislação e intervenha neste absurdo que ora aflige a comunidade de educadoras e educadores. Esperamos ainda que o poder executivo seja um pouco mais qualificado para entender que tal lei não se sustenta, pois viola direitos constituídos. Esperamos assim que a equidade de gênero e orientação sexual seja uma premissa do fazer pedagógico de todos os espaços educativos de nossa sociedade.

[1]  EGGERT, Adla; REIS, Tony; Ideologia de Gênero: uma falácia construída sobre os planos de educação brasileiros. Educ. Soc., Campinas, v. 38, nº. 138, p.9-26, jan.-mar., 2017, p.20.

* Janaina Guimarães da F. Silva – Prof Dra do Departamento de História da UPE campus Mata Norte e professora do Programa de Pós Graduação em Educação – PPGFPPI. Pesquisadora das Relações de Gênero em História e Educação

*Por Antonio Carvalho  – Licenciado em Historia, Especialista e Mestre em Educação Contextualizada para Convivência com o Semiárido Brasileiro. Tem desenvolvido pesquisas em educação preocupado com questões de raça, gênero e sexualidade e  militante LGBTQ.

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