A cultura do estupro avança como uma verdadeira pandemia no Brasil

É preciso ter responsabilidade diante desse cenário brutal de mulheres sob a iminente ameaça da misoginia

Djamila Ribeiro| Foto: Mauro Pimentel

Na sexta passada, quem estava em Sergipe assistindo à TV viu, várias vezes, reproduzido o vídeo de um homem que flagrava outro estuprando uma menina de 11 anos. Munido de uma faca, o agressor correu ao passo que a criança gritou notando a presença de um terceiro.

Só a descrição do vídeo já seria chocante, mas não bastou: emissoras mostraram o vídeo dezenas de vezes, sem cortes ou avisos de que seria uma cena de violência. Tanto a TV Sergipe, afiliada da TV Globo, como a TV Atalaia, afiliada da TV Record, transmitiram estupro em looping, prendendo a audiência aos gritos da criança.

No sábado, um homem foi preso em Sabará, em Minas Gerais, acusado de “molestar uma criança”. Ele abordou a menina de 12 anos com sua caminhonete, dizendo-se fotógrafo e que gostaria de tirar fotos dela. Convidou-a para entrar no carro, onde passou a mão nos seios, braços e pernas da garota, que saiu correndo.

Ele foi encontrado pouco depois e negou o ato. Porém, ao ser confrontado com as imagens do momento do crime, confessou “ter uma fraqueza”.

No mesmo dia, foram divulgados dados da Secretaria de Segurança Pública do Ceará, que apontou recorde no número registrado de crimes sexuais em setembro, com 198 casos.

Um dos casos destacados é o de um homem preso acusado de atrair pelo menos dez crianças para brincar com jogos eletrônicos em seu celular, quando então cometia o estupro.

No dia 11 deste mês, uma menina de 11 anos foi dada como desaparecida em Petrolina, no interior de Pernambuco.

Após buscas pela cidade, o corpo da garota foi encontrado em um matagal próximo à rodovia. A avó da menina contou que o irmão do padrasto a abordou no mototáxi com uma boneca e bombons. Seu corpo foi encontrado com sinais de estupro e esganadura.

No dia 12, Anizielly Errobidart, de 28 anos, morreu em Corumbá, em Santa Catarina. Não resistiu ao levar pelo menos dez facadas por denunciar o estupro de sua filha de oito anos. O filho do homem acusado, que se encontra preso, foi até a casa dela e cometeu o crime. Anizielly deixa outros dois filhos, uma menina de seis anos e um menino de dois. A família se mobiliza pela condenação do pai e do filho.

No dia 13, foi divulgada a história de uma adolescente em Mombuca, no interior de São Paulo, que foi estuprada pelo pai dos nove aos 12 anos, assim como suas duas irmãs.

Após a prisão do pai, um homem, pastor evangélico e guarda civil municipal que mantinha contato próximo com ela desde que era criança, pediu a guarda provisória na Justiça, que aceitou com parecer favorável do Conselho Tutelar.

Durante a visita da mãe biológica à criança, foi notada uma intimidade entre ambos que chamou a atenção, além do fato de a mulher do pastor ter quebrado o celular da menina.

Em outra visita, a mãe flagrou o pastor abusando sexualmente da garota. Ele fugiu, mas ao ser preso disse que trocavam bilhetes e que estava apaixonado. Foi descoberto que a mulher do pastor também sabia, mas não o denunciou a fim de preservar o casamento.

E assim seguimos: 14, 15, 16. Mulheres estão sob a ameaça da misoginia, devendo haver políticas públicas na área — em que pese o orçamento do governo federal para isso ter tido drástica redução, com a estagnação de políticas, tais como a Casa da Mulher Brasileira, a CMB, um centro integrado de apoio à vítima de violência.

Segundo reportagem desta Folha, a pasta usou até setembro apenas metade da verba do ano para a proteção da mulher.

Ao programa CMB, por exemplo, foi utilizada a irrisória quantia de R$ 1,6 milhão do total de R$ 24,6 milhões disponíveis. O governo já anunciou que reduzirá em 25% o orçamento da pasta no ano que vem. De outro lado, esforços não foram poupados, contudo, para avançar sobre uma menina de dez anos estuprada pelo padrasto que decidiu pelo aborto legal e decidido na Justiça.

É preciso ter responsabilidade diante desse cenário brutal.

Ana Paula Araújo, jornalista, recentemente publicou o livro “Abuso – A Cultura do Estupro no Brasil”. Na obra, ela entrevista mais de cem vítimas, familiares, criminosos e conta outras histórias desoladoras, inclusive uma delas própria, apalpada no ônibus enquanto dormia.

Em entrevista ao Universa, Araújo conta: “Não conheço uma mulher que não tenha um caso de abuso para contar. E, se por acaso a mulher não sofreu abuso, de qualquer maneira convive com esse fantasma, de que isso possa acontecer”.

Está mais do que na hora de o tema ser pautado como se deve: a cultura do estupro como uma verdadeira pandemia no país.

Fonte: Geledes