Me Gritaram Negra: A lei 10.639/03 nos mobiliza à ressignificar a palavra, a educação, as relações étnicas/raciais

“Me gritaram negra”

Tinha sete anos apenas,

apenas sete anos,

Que sete anos!

Não chegava nem a cinco!

De repente umas vozes na rua

me gritaram Negra!

Negra! Negra! Negra! Negra! Negra! Negra! Negra!

“Por acaso sou negra?” – me disse

SIM!

“Que coisa é ser negra?”

Negra!

E eu não sabia a triste verdade que aquilo escondia.

Negra!

E me senti negra,

Negra!

Como eles diziam

Negra!

E retrocedi

(…)

Até que um dia que retrocedia , retrocedia e que ia cair

Negra! Negra! Negra! Negra!

Negra! Negra! Negra! Negra!

Negra! Negra! Negra! Negra!

Negra! Negra! Negra!

E daí?

E daí?

Negra!

Sim

Negra!

Sou

(…)

Chamam aos negros de gente de cor

E de que cor!

NEGRA

E como soa lindo!

NEGRO

E que ritmo tem!

Negro Negro Negro Negro

Negro Negro Negro Negro

Negro Negro Negro Negro

Negro Negro Negro

Afinal

Afinal compreendi

AFINAL

Já não retrocedo

AFINAL

E avanço segura

AFINAL

Avanço e espero

AFINAL

E bendigo aos céus porque quis Deus

que negro azeviche fosse minha cor

E já compreendi

AFINAL

Já tenho a chave!

NEGRO NEGRO NEGRO NEGRO

NEGRO NEGRO NEGRO NEGRO

NEGRO NEGRO NEGRO NEGRO

NEGRO NEGRO

Negra sou!

(Victoria Santa Cruz)

 

Em tempos tenebrosos é sempre bom relembrar nossas conquista. Esse texto é só uma provocação da importância desse instrumento jurídico. Haja vista que a lei 10.639/03 conclama a escola à produção de saberes que devem emanar dos referenciais identitários negros. Como previsto na lei, “§ 2º os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileira”. Ou seja, todo o currículo da educação básica deve levar em consideração as demandas de representação suscitadas por essa imensa parcela da sociedade brasileira que é negra. Para isso, a escola tem o desafio de organizar suas práticas pedagógicas de modo não racista, produzindo representações positivas sobre as identidades negras.

A lei 10.639/03 é uma política de reparação educacional aos povos negros, assim como está apregoado nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana de 2004 (BRASIL, 2004), documento que regulamenta o disposto na lei, e que se faz imprescindível para os administradores dos sistemas de ensino em todo o país. Pois esse documento se pauta no dever do Estado Brasileiro em cumprir com sua obrigação de igualdade de direitos a todos os seus cidadãos e cidadãs, a partir do reconhecimento do racismo.

A lei 10.639/03 não tem recebido grande atenção dos sujeitos e instituições que compõem a educação escolar pública. Recentemente, em trabalho publicado com mais dos pesquisadores (por meio de aplicação de questionários a 66 professores da rede Municipal de Educação de Juazeiro), constatamos que poucos professores dizem conhecer a existência desse dispositivo legal. O número fica ainda mais reduzido quanto o assunto é a formação dos profissionais para lidar com as novas questões suscitadas pela lei, um número ínfimo de professores tem participado de qualquer espécie de curso para lidar com as questões dispostas em lei (REIS, SANTOS, ALVES. 2015).

A lei nos provoca a refletir sobre as categorias Raça e Racismo, essas que se estabeleceram como fios condutores de todo um processo de subalternização de imensos grupos humanos no mundo. Elas alinhavam estratégias de dominação que se fazem na reivindicação de um modo mais verdadeira de ser humano e, com isso, hierarquiza e desqualifica o diferente. Essas categorias desencadeiam uma série de investidas classificatórias que partem da naturalização das desigualdades entre os diferentes grupos humanos. E, com isso, explica o lugar sócio/econômico/cultural dos sujeitos a partir das suas diferenças genéticas e biológicas.

Esse instrumento jurídico acima de tudo nos convida a ressignificar a palavra negro/a, seus sentidos nos currículos escolares, assim como nos propõe o poema. Com isso, essa lei que está completando 14 anos de promulgada é o passaporte para o investimento em políticas publicas para educação que tem como eixo orientador as questões raciais.

Esse mecanismo legal tem por objetivo garantir o ensino da história e da cultura africana e afrodescendente em toda educação básica, pública e privada. Seus artigos alteram a LDB de 1996, trazendo a tona uma série de reflexões acerca da escolarização brasileira; exigindo de todos os educadores a problematização dos nossos currículos; pondo-nos frente ao desafio de construção curricular que garanta a produção de saberes intimamente vinculado às identidades negras. Visibiliza-se assim, uma gama de sujeitos que habitam/constroem o universo escolar. Exige dos educadores com isso, o desnudamento de uma escola pública negra, impregnada de representações que precisam ser compreendidas para o desmantelamento do racismo em nossa sociedade.

 

Por Antonio Carvalho (mestre em educação)